Paternalismo judicial
Ao dizer que, não fosse pelo Supremo, haveria ‘213 milhões de pequenos tiranos’ no Brasil, Cármen Lúcia revela que parte da Corte vê o cidadão não como titular de direitos, mas como ameaça
A desordem instaurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet não se desvela “apenas”, por assim dizer, como um erro jurídico. Um erro, eventualmente, pode ser corrigido. O problema é mais grave. Subjaz à confusa decisão da Corte o predomínio de uma mentalidade autoritária segundo a qual caberia aos doutos 11 ministros salvar os brasileiros de si mesmos, resgatá-los da incivilidade e do despreparo para tomar decisões e formar juízos por conta própria.
Do constrangedor despreparo exposto por alguns ministros ao voluntarismo manifestado por outros, o páreo era duríssimo. Mas nada encarnou tão bem esse espírito daninho que animou o STF durante o julgamento quanto o voto da ministra Cármen Lúcia. Ao decidir pela responsabilização das redes sociais pelo conteúdo publicado por usuários sem a devida moderação judicial, a ministra afirmou que “não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”. Noves fora a arrogância, trata-se de uma visão absolutamente distorcida da democracia, do papel do Judiciário e, não menos importante, do serviço que o Supremo deve prestar à sociedade.
Ao fim e ao cabo, o que a maioria do STF revelou entender por democracia é um regime no qual o cidadão não é visto como titular de direitos, mas como uma potencial ameaça a ser contida pelo Estado. As togas que se prestaram a uma avaliação desse jaez não serviram à impessoalidade, à imparcialidade e à dignidade da Justiça – serviram à tirania. Foi exatamente o que o Supremo fez. Agora, sim, a internet será “terra de ninguém”. Agora, de fato, haverá milhões de “pequenos tiranos soberanos” prontos para apontar o dedo para tudo o que encontrarem de “ofensivo” nas redes sociais. Pouco ou nada de útil para o debate público online sobreviverá à razia desses bem-intencionados servos da “verdade” e da “democracia”.
Para infortúnio do País, por mais problemática que seja, a infeliz intervenção de Cármen Lúcia está longe de ser um caso isolado, como se sabe. A fala da ministra foi só mais uma expressão de um ânimo que se consolidou no Supremo nos últimos anos para tutelar a sociedade em uma miríade de questões, como se os cidadãos brasileiros fossem incapazes de exercer sua liberdade com responsabilidade. Nesse sentido, Cármen Lúcia aliou-se ao colega Dias Toffoli, segundo quem o Supremo exerce um “poder moderador” e, por essa razão, os ministros atuam como “editores de um país inteiro”. Incontornável lembrar, ainda, que o próprio presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, já falou em “recivilizar” o Brasil.
Ao classificar todos os brasileiros, indiscriminadamente, como “pequenos tiranos soberanos”, a ministra Cármen Lúcia parece ter esquecido que a liberdade de expressão, com todos os seus excessos e imperfeições, é um pilar fundamental da vida democrática. Abusos, desde que criminosos, devem ser responsabilizados, como já previa o próprio Marco Civil da Internet, entre outras leis. Mas o que se prega é a supressão de discursos indesejados em nome de uma sanha purgatória que seguramente descambará, como já sublinhamos nesta página, para a censura prévia e/ou para o agravamento do quadro de desconfiança sistemática que grassa no debate público em ambiente digital.
A missão do Supremo não é nem nunca foi reeducar a sociedade – muito menos silenciá-la seja lá por que meios. É resguardar a Constituição e as leis tais como elas são, não como deveriam ser, e garantir a todos os cidadãos os seus direitos fundamentais, entre eles o direito de livre manifestação do pensamento.
A Corte, por sua própria natureza contramajoritária, deve ter cuidado redobrado ao se pronunciar sobre temas que tocam diretamente a liberdade individual. Quando se afasta desse princípio, o Supremo corre o risco de deixar de ser visto como guardião da Constituição para se tornar instrumento de controle do discurso público – algo incompatível com os fundamentos de uma democracia liberal que, pelo jeito, ainda tem um longo caminho a percorrer até o pleno grau de amadurecimento.
Opinião do Estadão