STF como puxadinho do Congresso
Ações propostas por partidos ao Supremo quadruplicaram desde 2003, revelando uma política pouco propensa a consensos e uma Corte que se deixa capturar por embates que não lhe dizem respeito
O Estadão levantou um dado revelador da disfuncionalidade da política partidária no País. O número de ações propostas por partidos ao Supremo Tribunal Federal (STF) quadruplicou desde 2003, saltando de 472 entre 1989 e 2002 para 1.892 até junho deste ano. Por um lado, resta evidente que, nas últimas duas décadas, as legendas passaram a enxergar no STF uma espécie de puxadinho do Congresso, tratando-o como uma extensão da arena política. Por outro, isso só aconteceu porque os próprios ministros da Corte não apenas permitiram, como gostaram desse jogo no qual são protagonistas.
Antes da promulgação da Constituição de 1988, o acesso ao STF era restrito, basicamente, à Procuradoria-Geral da República (PGR). Restabelecido o regime democrático, a nova Carta Política ampliou o rol de autoridades e representantes da sociedade civil com legitimidade para ingressar com ações na mais alta instância do Judiciário. É compreensível. Até a redemocratização, a PGR, na prática, não era mais do que um braço do Executivo, servindo aos interesses da ditadura militar. Porém, passadas quase quatro décadas de vigência da “Constituição Cidadã”, o modelo previsto pelos constituintes originários claramente demanda revisão.
O espírito à época, louvável, era resguardar os interesses de minorias que passaram a ter guarida constitucional. Porém, hoje o que se vê é a instrumentalização desse acesso por partidos com baixíssima representatividade que, como maus perdedores, correm para as barras da Justiça quando derrotados em votações legítimas. Com razão, o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (União-AP), anunciou que pretende apresentar uma medida legislativa para fixar critérios mínimos de representatividade para que um partido seja autorizado a peticionar ao Supremo. De fato, é preciso restabelecer alguma ordem nessa bagunça institucional.
Casos pontuais de intervenções judiciais nas lides políticas fazem parte do sistema de freios e contrapesos. Mas o que os números levantados por este jornal indicam é um problema estrutural: a perversão desse sistema por legendas absolutamente despreparadas para a vida democrática.
É claro que, como em qualquer outra democracia, é legítimo que partidos recorram ao STF em casos de afronta evidente à Constituição. Basta dizer que a própria Constituição prevê que as legendas têm legitimidade para propor ações de controle concentrado de constitucionalidade. O problema, portanto, não está na existência do instrumento, mas em seu uso desvirtuado. Com um quadro partidário altamente fragmentado, tíbio do ponto de vista ideológico e programático e marcado por uma polarização infensa à construção de consensos, as siglas demonstram, a cada nova ação judicial, sua incapacidade de dialogar, negociar e formar maiorias legítimas em torno de propostas de interesse nacional.
Dito isso, o STF também precisa ser mais criterioso na análise da pertinência dessas ações. A justificativa usual de que a Corte “não pode prevaricar” esconde a falta de coragem ou interesse de alguns ministros para desconhecer certos pedidos que lhes são feitos, devolvendo-os ao locus apropriado: o Congresso. A simples recusa de conhecimento de determinadas ações ajuizadas com evidente propósito político-eleitoral já seria um passo importante para desestimular a “judicialização da política” e reafirmar o papel técnico e institucional do Supremo.
O resultado dessa anomalia é uma sobrecarga crescente do STF, a corrosão da autoridade do Congresso como instância política por excelência e o aumento da tensão entre os Poderes. Como se isso não bastasse, a excessiva exposição política do Supremo causa danos não triviais à sua própria imagem, reforçando a percepção de que os ministros agem movidos por interesses políticos.
Não há solução simples para essa distorção. Mas uma providência se impõe com urgência: um necessário debate, em nível constitucional, sobre os critérios de admissibilidade de ações propostas por partidos ao STF. É preciso estabelecer filtros mais rigorosos para coibir o uso abusivo da Justiça como arena política. Outra seria a autocontenção dos próprios ministros da Corte. Mas aí é querer demais.
Opinião do Estadão