Supremo bagunça as redes sociais
Ao desfigurar o Marco Civil e fazer das redes sociais um campo minado de regulações confusas, STF criou um sistema autoritário e nebuloso, alimentando a insegurança jurídica
Com o julgamento encerrado, já se pode dizer sem exagero: o Supremo Tribunal Federal (STF) instaurou o regime mais confuso de responsabilização de plataformas digitais entre todas as democracias liberais. A decisão marca o fim de um modelo internacionalmente reputado – o do Marco Civil da Internet, aprovado após amplo debate democrático – e, em nome de uma cruzada moral contra as big techs, inaugura uma era de opacidade normativa, censura preventiva e centralização sem precedentes.
Até agora, vigorava um critério simples, claro e garantista: plataformas só poderiam ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros se descumprissem ordem judicial de remoção. Com isso, evitavam-se tanto o arbítrio estatal quanto o pânico corporativo, incentivando a mediação judicial e desestimulando abusos. Em lugar de um modelo previsível, foram criados quatro regimes aplicáveis conforme o tipo de conteúdo, o contexto, a percepção da plataforma ou, como sugeriu o especialista Ronaldo Lemos em postagem no X, a “sabedoria” do céu. No Brasil, a segurança jurídica virou um pedido de oração.
A tese do STF prevê obrigação de remoção sem ordem judicial para uma lista ampla e vaga de ilicitudes, como “conteúdos que propagam ódio”, “condutas e atos antidemocráticos” ou “discriminação”. A responsabilidade subjetiva, pilar do sistema, foi substituída por uma “presunção de responsabilidade”, sem definição clara. Nem os ministros parecem concordar sobre o que isso significa – e a tese foi fixada a portas fechadas, num almoço casual, como se a Corte constitucional fosse uma corte absolutista.
O contraste com o Direito europeu, tantas vezes invocado, não poderia ser mais flagrante. Na União Europeia, as obrigações mais rigorosas do Digital Services Act aplicam-se só a plataformas com mais de 45 milhões de usuários. Aqui, aplicam-se a tudo: do Google a fóruns de nicho, do Instagram ao Reclame Aqui. Lá, as regras foram deliberadas democraticamente. Aqui, foram improvisadas pelo Judiciário.
O cenário é sombrio: sob risco de punição, as plataformas removerão conteúdos preventivamente. Como distinguir, sem ordem judicial, o que é “manifestamente ilícito”? Críticas à presença de mulheres trans em esportes femininos serão “conteúdos que propagam ódio”? Um empresário virou réu por sugerir a revisão de benefícios fiscais a pessoas com deficiência. O presidente da República, que se recusa a classificar o Hamas como grupo terrorista, já chamou articulações de adversários de “terrorismo”. Mesmo o que pareceria óbvio é subjetivo e dependente de contexto. Mas a nova regra presume que empresas privadas saibam mais que juízes.
E elas não têm escolha: submetidas a regras vagas, custos elevados de conformidade e riscos jurídicos imprevisíveis, as pequenas e médias plataformas enfrentarão um fardo que poucas suportarão. Diferentemente das grandes corporações, que contam com departamentos jurídicos robustos e recursos para automatizar a moderação de conteúdo, os menores serão forçados a remover conteúdos em massa por precaução – ou abandonar o mercado. O novo regime, ao invés de disciplinar os gigantes, os blinda da concorrência, inibe a inovação e empobrece o ecossistema digital, onde a pluralidade de plataformas é tão essencial quanto a pluralidade de opiniões.
Tão preocupante quanto o conteúdo da decisão é sua forma. A Corte fabricou exceções onde a Constituição exige lei, e o fez com o entusiasmo de quem se vê investido de uma missão redentora: salvar a democracia, reeducar a sociedade, recivilizar o País. Para os togados, parece pouco guardar a Constituição – é preciso moldar a cultura.
Mas toda cultura moldada sob coerção tem algo de totalitário. E toda democracia que entrega o debate público ao arbítrio de magistrados ou empresas privadas coagidas a censurar perde algo de sua alma.
A decisão do STF cria um precedente perigoso, desfigura uma lei mundialmente respeitada e inscreve o Brasil no mapa das democracias formais com práticas crescentemente autoritárias. O decano Gilmar Mendes, em tom espirituoso, disse que todos na Corte são “admiradores do regime chinês”. A frase, lida à luz do julgamento, tem menos de graça do que de profecia.
Opinião do Estadão